Transcomunicação.
(Adriano Mariussi Baumruck)
Provérbios 15,4: "O falar amável é árvore de vida, mas o enganoso deprime o espírito."
Quando ela, no meio da noite escura, da música alta e das
duas doses de uísque colocou a mão em meu rosto e disse:
-Eu sei disso, eu te conheço...
Meu corpo foi jogado das alturas mais inimagináveis, até as
profundezas mais sórdidas da natureza humana. Minha queda foi acelerada e
mortal. O espelho d'água de outrora tornara-se pedra, asfalto quente. E aquela
mão que parava tudo e todos, seria minha cruz.
Quando ela repousou sua mão em meu rosto e disse suas
palavras sábias, eu pude reparar o quanto eu não me conhecia, mas me entendia.
A imagem do espelho d'água era notoriamente compreendida e conhecida por mim;
porém, como aquele que não olha a própria sombra, eu a negava.
- A escrotidão! Dizia eu. A escrotidão... Quanto mais eu
vejo essa qualidade nas pessoas, mais eu a observo e estudo, e por ventura,
sorvo partes de corpos alheios. Essa pedra tão rara me encanta e me estraga...
Enquanto eu dizia isso, sua boca se abria em um confortável
sorriso. Seus olhos riam também. Eu me via neles, eu me via nela. Via o quanto
eu me amarrava à questões preconceituosas e a falsos paradigmas, inventados
única e exclusivamente por mim. Via-me em seus olhos. Via minha alma e toda
minha vontade. Nesse momento, toda minha embriaguez havia passado.
Quando eu terminei tal discurso embriagado, notei que todas
as verdades e pudores que eu guardava cancerigenamente, estavam balançando e
dançando sobre aquela mesa. Eu estava mais leve e pude aproveitar, mesmo que
brevemente do abraço e da vontade de permanecer para sempre que estavam por
vir.
Hoje, quando eu me lembro, sinto o fantasma da mão em meu
rosto e uma voz doce que canta em meus ouvidos dizendo:
-Eu sei disso, eu te conheço...